quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

O Natal da minha aldeia*

*Texto do escritor André Nunes (também conhecido neste blog como pai postiço)

É dezembro.
Ontem, os jornais das principais emissoras de tv estavam mostrando as luzes de natal das grandes cidades do mundo.
Detive-me, por um tempo, extasiado.
Convenhamos, é bom de ver.
Nova Iorque, Sidnei, Londres, Paris, ah! Paris, mesmo sem natal, Cidade Luz.
São Paulo do Ibirapuera, da Avenida Paulista. Curitiba do Barigui, do coral das crianças na janela do banco não sei o que.
Rio de Janeiro, Copacabana, e aquela árvore imensa na Lagoa Rodrigo de Freitas explodindo em pirotecnia e em cores de milhões de lampadinhas coloridas me deixaram mundiado.
Um espetáculo de tecnologia diz-que de ponta. Hi tec.
E foi só.

Troquei de canal e fui assistir o Doutor House. Um médico ranheta com quem às vezes me identifico, mas também é só. Nunca me lembro da trama, de uma cena mais inteligente, nem sequer, à exceção do próprio, da atuação de nenhum outro ator. Deve ser uma produção ruim mesmo.

Moro em Marituba.
Minha aldeia é Marituba.
Já foi Altamira, mas virou cidade. Rica. Do limbo, mas cidade. Vai ter até hidrelétrica. Para o bem ou para o mal. Acho que para o mau. Com u mesmo.
Meu, continua sendo o Xingu, mas isso é outra história.

Minha aldeia é pobre. Muito pobre.
Minha rua se chama Uriboca. Meu bairro é o Pato Macho, que, à minha revelia, querem mudar para São João. Já quiseram que fosse Bairro do Menino Deus, até Olga Benário.
Continuo resistindo.
Meu endereço é Estrada do Uriboca 3.000, bairro do Pato Macho.

Antigamente aldeia não tinha bairro.
Podia até ter, mas ninguém chamava bairro. Acho que por pudor. Era muita pavulagem. Em Vigia havia o Arapiranga e, em Altamira, o Recreio, ou Rua da Palha, ou Muquiço.

Esse “minha aldeia” tem tudo a ver com Fernando Pessoa que com poesia ensinou a simplicidade das coisas.
Acho, até, que ele escreveu “O rio de minha aldeia” pra mim. Para o Xingu. Mais pela nostalgia, que pelas dimensões.
Xingu de antes, que um dia pensei de sempre.

Aldeia é uma palavra de singeleza impar. Nem precisa descrever. Logo se imagina. Um vale ou encosta de morro. Uma torre de igreja, sino, casas toscas e ruelas tortuosas.

“Sino, coração da aldeia
Coração, sino da gente.
Um sente quando bate,
Outro bate quando sente”

Aldeia européia.

Altamira, quando era aldeia, também tinha igreja e sino.
Badaladas diferentes faziam parte de nossas vidas.
Badalar das horas, do meio dia, do ângelus, das chamadas para missa e novena, estas, como nos teatros, ao final, compassadamente, batia uma, duas, três vezes. A última era o começo da função.
Quando alguém morria, o toque, também era diferente.
A vila ficava silente. Reverente. A meninada arrefecia a algazarra.
Logo alguém traria a notícia do passamento de algum enfermo. Geralmente idoso.
Depois da semana santa, desde a procissão do senhor morto, até o domingo de páscoa, os sinos não dobravam. Usava-se a matraca com som de madeira.

Isso foi o mais próximo que cheguei da noção de aldeia.

Os portugueses, não sei porquê, não trouxeram esse conceito para cá. Preferiram arraial, depois vila, e sei lá o quê mais.

Aldeia que se conhece é coisa de índio. Muito diferente e, se bem olharmos, mais singela, apenas não é lugar para poetas.
Quantas gerações ainda passarão para nascer, em uma aldeia, dessas daqui, de índio, um Fernando Pessoa, um Ferreira Gulalar, um Jesus Pais Loureiro, Pedro Galvão, um Drumond?
Os poetas daqui são urbanos. Nosso Parnaso é de concreto e asfalto. Não vale forçar exceções. Cora Coralina, Cecília Meirelles, meninos e meninas de engenho e quejandos.

Minha aldeia é Marituba.
Podia ser, e quase foi, por afinidade, Xipaia, Curuaia ou Caiapó. O que não teria a menor importância. Nada mudaria. Não sou poeta. Minha praia é a prosa de pé quebrado. Se não existia, agora existe, é isso aí. Capenga.

De repente, aldeia passou a saber a estrangeirismo. Que seja. Até porque está na moda. Usa-se por qualquer dá cá aquela palha.
No mais das vezes sem a menor necessidade, por puros pedantismo, modismo, ou mesmo, incultura. Dellivery, fashion, dark, drive thru. Tudo perfeitamente contemplado no vernáculo.
Quanto a aldeia, não. É única, e a substituição é no mínimo triste, senão, ridícula: interior, cidadezinha, ou, pior ainda, cidadezinha do interior. Convenhamos, “a aldeia do meu avô” é mais palatável do que “o interior do meu avô”.
Não temos aldeão.
Temos interiorano, que é horrível.
Caipira, capiau, sertanejo, caboclo, são ótimos, mas não são a mesma coisa.

Meu interior, não é Marituba.
Marituba é minha aldeia, quando não, em tributo a Pessoa.

É Natal em minha aldeia.
  
Hoje foi a inauguração da ornamentação de natal da pracinha.
Pracinha pobre, inculta, sem grama, e canteiros sem flores. Mal cuidada. Muito concreto. Cimento não combina com praça. Flor, grama, sombra, criança combinam.
  
Cheguei por volta das seis ou sete horas, para ver o acender das luzes, da árvore de natal de oito metros de altura, das grandes bolas iluminadas e dos postes e árvores com as lampadinhas, em espiral, qual cobras finas e coloridas, a subir sem pressa para lugar nenhum.

Era muito cedo e ainda se estavam dando os últimos retoques.
Um locutor, com voz impostada, testava o som que reverberava por duas grandes caixas situadas nas extremidades do palco de concreto da concha acústica que há no meio da praça, ao lado da caixa d`água. Caixa acústica. Som ensurdecedor. Esse é o nome moderno, creio, para o que antes chamavam-se auto falantes.
 Alô, alô, experiência, alô.
Contornando a boca do palco, guirlandas de lampadinhas a piscar.

Ao redor da praça, dezenas de barracas a vender de um, tudo. Bolo de macaxeira, tacacá, unha de caranguejo, sanduíche, amburguer, x-burguer, x- tudo, cachorro-quente e hot-dog, que por aqui, não são a mesma coisa. Cachorro-quente é pão com carne moída temperada com cheiro-verde, e hot-dog é hot-dog, mesmo. Aquele um, americano, com salsicha e quetichupe.
Refrigerante, refresco, que agora chamam de suco, e que já foi até vinho e, cerveja em lata.
Detesto cerveja em lata. E copo de plástico.

As mesas das barracas ainda estavam vazias. Achei a da minha amiga Lôrdes. Acho que se escreve Lurdes ou Lourdes, mas no patoá de Abaetetuba, é Lôrdes, mesmo. Ela faz questão de acentuar o ô circunflexo.

Já veio rindo. Sua eterna alegria por vezes agride minha casmurrice habitual. Não adianta. A alegria de viver da Lôrdes sempre vence. Contagia.
Sem perguntar, já veio, gorda, cabocla, linda, amiudando os olhos caboclos, rindo, como se disse, e com uma cerveja e um copo.
Cerveja em lata e copo de plástico.

As pessoas começaram a chegar e a lotar a praça.
Papai Noel já havia chegado e estava sentado em uma poltrona de vime na sua barraca de palha. Barraca de paxiúba e coberta de palha de ubim. Por cima, uma espécie de manta grossa de algodão. Neve. Neve tropical.
Literalmente, adorei.

Mesmo antes da música começar, as pessoas chegavam alegres, rindo à toa. Jovens, muitas moças e rapazes ainda com uniforme escolar dos cursos noturnos. Também chegavam idosos e crianças fazendo fila para tirar fotografia com o Papai Noel. Alegres. Pais-fotógrafos mundiados. Hoje, todo celular bate foto.

Por um átimo me vieram à mente Nova Iorque, a Lagoa Rodrigo de Freitas, a Avenida Paulista. Pirotecnia de ponta. Lindas, ricas, precisas, tão pontuais que permitiam contagem regressiva na hora de acender. Cinco, quatro, três, dois, um...Ah!
 Pasteurizadas.

Meses atrás, já nem me lembro se agosto ou setembro, a Teresa, mulher do meu amigo Gilberto, aqui, na beira do Uriboca falou-me, por alto, que iria fazer a ornamentação da praça. Achei ótimo, afinal, Teresa comanda a importante Secretaria Municipal de Meio Ambiente, e bastava contratar arquitetos, decoradores, enfim, pessoal, material e bom gosto.
Mudamos de assunto.

Teresa sumiu. Nunca mais veio almoçar aqui, como sempre fazia.
Acho que em novembro telefonou.
- Não queres passar por aqui para ver como estão ficando as peças da ornamentação do Natal?
Confesso que já havia até esquecido.
- Claro. Onde é?
- Aqui em casa. Falou com a maior simplicidade, como se fosse a coisa mais lógica do mundo.

Logo na entrada tomei um susto. A casa da Teresa estava um caos. Jardim, garagem, churrasqueira, sala, banheiros e até os quartos estavam atopetados de garrafas plásticas vazias. Pets.
 Ela veio ao meu encontro, toda suja de tinta, ainda com um pincel na mão e foi logo explicando o óbvio:
- O tema é reciclagem. E continuou falando com toda a empolgação que só os jovens costumam ter, enquanto eu, não mais ouvia nada. Só olhava tudo meio aparvalhado.
Que era reciclagem, talvez fosse a tendência natural, afinal, Teresa é Secretária do Meio Ambiente, mas onde estão os arquitetos e decoradores?
O que eu via era um mundo de gente. Voluntários, alegres, barulhentos, passando café, cortando as tais pets, fazendo flores, bolas, armando árvores e anjos, e todo mundo rindo, até quando um pintor improvisado, com um pulverizador, nem notou que o vento estava levando a nuvem de tinta vermelha para o varal de roupas que estavam a secar. Lençóis brancos.

Naquele momento, chegava um trator pula-pula puxando uma carreta cheia se garrafas plásticas que os alunos de alguma escola municipal haviam coletado na semana. Pois não é que a Secretária de Educação, a Regina, também tinha embarcado na aventura?
- Meu deus! Ela é louca. Pensei.
Quando disse que “ia fazer”, eu imaginei contratar, planejar, gerir, nunca, ao pé da letra.

Nesta hora, me dei conta.

Minha aldeia é pobre.

Por fim, lá pela quinta latinha de cerveja a música encheu a noite da praça. As luzes já estavam todas acesas.
Mais gente. Muita gente. Pipoca, sorvete, maçã do amor. Criança por todo lado.
Parece que tudo aconteceu de repente, mas deve ter passado um bom tempo. As mesas da barraca da Lôrdes já estavam lotadas e havia gente bebendo em pé. Na latinha.

Lembro-me, vagamente, que nesse tempo, a Lôrdes contou-me um mundo de fofocas. Mais do bairro dela, a Pedreirinha.
Gravei apenas a história da gravidez da Miako, uma japonezinha linda, cujo marido estava há mais de um ano no Japão. O nome dele é Zecão. Pode, um nissei de olho bem rasgado ter o nome de Zecão?

A música do alto-falante era a mesma que toca em todo mundo. Jingobel, Natal Branco e assemelhadas.
O locutor, de paletó xadrez, assumiu o centro do palco e anunciou o início da inauguração. Prefeito, secretários e demais autoridades. Discursos e mais umas quatro latinhas de cerveja. Em copo plástico.
Mais histórias da Lôrdes, muitas gargalhadas, e fim dos discursos. Foi anunciada a apresentação de um coral. Cinco moças. Excelentes. A solista, Beth Mell, me emocionou cantando Com te partiró, de Gregory Lemarchal. Nestas alturas, a mesa já contava com mais umas oito cadeiras. No palco um dramalhão piegas de circo mambembe. Ótimo.
Na hora dos fogos, só me lembrei do espetáculo pirotécnico da Lagoa Rodrigo de Freitas. Todo mundo tenta ser feliz no natal. Eles, lá, em Sidnei, também. Ricamente, também.
Neste momento, a Bia, minha neta de dois aninhos, vinha correndo pelo meio de praça, e se aninhou no meu colo.
Bia tem medo do Papai Noel.
Ela estava feliz. É natal, a praça da minha aldeia estava feliz.
Eu também.

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