Acabo de receber um telefonema que me encheu de alegria e me deixou bastante emocionada.
O eterno sotaque italiano do padre Bruno Secci me faz um convite muito entusiasmado. Um convite, não! Uma intimação, como ele mesmo ressaltou.
No próximo sábado, o Movimento República de Emaús completa 40 anos e um grande encontro marcará a data. "Estamos tentando reunir todas as pessoas que ao longo desses 40 anos contribuíram com essa história", disse eufórico.
Parece que um filme passou na minha cabeça enquanto lembrávamos de mais nomes para contactar.
Era agosto de 1998. As aulas tinham reiniciado na UFPA após quatro meses de greve. Tínhamos tido apenas um mês e meio de aula no primeiro semestre, antes da paralisação. Eu era uma caloura no curso de Comunicação Social.
Logo na terceira semana, um aviso de estágio convocava candidatos para a seleção na Agência Emaús de Notícias, uma agência especializada em notícias sobre a realidade da infância e adolescência na Amazônia. O aviso de estágio deixava claro: o candidato deve estar cursando no mínimo, o quarto semestre.
Eis que, com muita cara de pau, apareci lá. O tema me interessava e a grana também. Já estava sentindo que não ia ter como bancar todas aquelas fotocópias.
Fui barrada logo na entrevista quando Milene Mattos, jornalista coordenadora da Agência, descobriu que eu só tinha dois meses de aula (juntando com as aulas do primeiro semestre, que eu lembrava pra ela a todo instante). Insisti para fazer o teste, pelo menos para eu saber como era um. Muito generosamente, ela permitiu, advertindo que eu era café com com leite.
Dois dias depois, fui lá para o teste. Tinha que escrever duas pequenas matérias sobre uns casos que obviamente eu não vou lembrar, de transgressão ao Estatuto da Criança e do Adolescente. Só lembro que um era em Rondônia e o outro no interior do Pará. A apuração era toda por telefone.
A Agência funcionava em duas salas conjugadas ao lado do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (CEDECA) e, por conta do espaço apertado, a tal coordenadora ouvia tudo.
Mas a pior parte mesmo veio depois. Passava um pouco das 12h e as pessoas se arrumavam para sair para o almoço. Milene também. Na saída, ela fala pra mim "Vi que você já terminou de apurar suas matérias, né? Então escreva os textos neste computador aqui. Você domina word, né?". Eu nunca nem tinha ligado um computador na minha vida até aquele dia, mas respondi que sim, sem nem imaginar como eu faria para escrever. Ao passar pela porta entra o então estagiário que estava saindo da função para abrir aquela vaga, o hoje coordenador da Rádio Unama e professor da Universidade da Amazônia, Marcelo Vieira. Milene se vira e diz "qualquer coisa, pede uma luz pra o Marcelo".
Olhei pra ele como quem olha para um anjo salvador. Abri meu coração e contei que não sabia nem ligar o computador. Ele riu e muito gentilmente me disse que me ensinaria o básico,s o suficiente para eu escrever o que precisava. Não preciso nem contar que ela voltou do almoço e quase saiu pra o jantar e eu continuava cantando milho, né? Pois é!
Mas o legal mesmo é que uma semana depois, a vizinha chega em casa com o recado de que era pra eu ir no Emaús no dia seguinte de manhã. Milene me pergunta olhando bem nos olhos "Você vai ser responsável? Vai se esforçar para dar conta?". Parecia que eu estava sonhando! Ela disse que eu estava sendo contratada.
Eu digo que o Papai do Céu anda sempre comigo...
A questão toda é que eu tive a grande sorte de começar essa profissão tão difícil naquela Agência, que tinha a difícil missão de noticiar qualquer fato que fosse de encontro ao que regia o ECA, bem como que de divulgar todas as boas ações em defesa de crianças e adolescentes. O trabalho era financiado por entidades internacionais e tudo funcionava sob os olhos atentos do grande Padre Bruno, cuja sala, ficava ao lado.
Comecei a aprender jornalismo num lugar onde o respeito pelos direitos humanos é o que prevalece. Um lugar onde as pessoas trabalham pelo bem, onde se forma cidadãos, onde se luta e se faz um mundo melhor mesmo. No duro dia-a-dia do jornalismo e com a realidade tão cruel dos dias de hoje, apegar-se a isso é fundamental!
Lições que se leva para a vida.
Milene Mattos, Padre Bruno e todos os outros companheiros que comigo compartilharam os 11 meses que lá passei, muito obrigada por tudo!
E obrigada a você também, Marcelo. Tua ajuda fez toda a diferença!
Viva o Movimento de Emaús e todas as vidas por ele transformadas!
8 comentários:
Como sempre, um bom relato. Gosto desses teus textos, em que contas fatos teus, ou dos outros. Gosto mesmo.
Para quem, como você, conta com um talento impressionante para a comunicação, nada mais natural. Nada mais justo!
Seu texto flui com correção, espontaneidade e leveza. Lendo este blog, de cabo a rabo, pode-se perceber isso com tranquilidade. Muito embora, a vida não lhe tenha sido exatamente fácil, como já me disse antes. Mas talvez, exatamente por isso, você é leve como uma pluma ao escrever.
Vejo seu coração batendo firme por trás das letrinhas.
E isso, é muuuuuuuuuito legal.
Bjs
Belissima história! já estava sentindo falta dos teus relatos! depois volta pra contar como foi! :)
Que lindo, Leiska! Parece que te vi de novo correndo de um lado pro outro na UFPa, falando dos casos encontrados no Emaús.
Emocionei com tua homenagem, mesmo sem ter qualquer relação com ela. Tão bom isso de se emocionar de verdade pelo que está além do nosso umbigo...
Bjs e mande meus parabéns ao Padre Bruno.
Fernando e Mari, obrigada queridos. Na verdade, esse estilo flui com a emoção, rsrsrs.
Dani, é verdade!´És contemporânea! Muitas histórias chocantes vi ali e muitas lindas demais.
E Carlos, meu bem, vc, por mais que não goste de ouvir isso, é suspeitíssimo! Do jeito que falas, vou me sentir o Saramago! rsrsrssrs
Beijos, gente!
Sou é?
Mas, como se dizia antigamente, por que "cargas d'água" eu não gostaria de ouvir isso?
Rsssss
Parabéns ao Emaús!
Fui estagiário de Direito do Emaús, entre 90/91. Gostei muito de trabalhar lá, aprendi muita coisa da prática do Direito mesmo, aquilo que a gente mais sente falta logo que sai da faculdade.
Ajudou muito a refinar minha visão das coisas e entender como tudo funciona quando o Direito vai longe do hermético ambiente acadêmico e é necessário nas esquinas...
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