quarta-feira, 21 de outubro de 2015

A doméstica e o futuro médico: uma amostra do crime e castigo no Brasil

Há uns 15 dias o Brasil inteiro se revoltou com um crime: um bebê recém-nascido foi abandonado numa rua do bairro nobre de Higienópolis, em São
Paulo, capital (glo.bo/1GwE4Q1).

As câmeras de segurança do bairro (são muitas, para proteção de seus moradores) permitiram identificar rapidamente a autora do crime. Não vou dar o nome dela, pois já foi estampado em todos os jornais, revistas e sites de mídia do país. 

Apenas resumo que se trata de uma nordestina que vive e trabalha em Sampa como empregada doméstica. Mulher, nordestina, pobre. Possivelmente com pouco estudo.

A autora do abandono justificou-se na delegacia: já tinha dois filhos, mora na casa dos patrões com a mais nova (o mais velho é criado por parentes na Bahia), e com medo de ser demitida escondeu a gravidez inteira, pariu o filho sozinha no banheiro do quarto de empregada e depois deixou a criança na rua. Fez questão de ressaltar que não a abandonou: escondeu-se atrás de uma árvore e ficou esperando alguém encontrar o bebê.

(Parêntesis aqui: ela deixou a criança dentro de uma sacola que pegou na casa dos patrões. A sacola era do Au Pied de Cochon, um restaurante tradicional de Paris)

Por óbvio, a doméstica foi condenada. Não falo do processo criminal, que ainda vai rolar bastante - embora eu não tenha dúvida da condenação dela neste. Foi condenada sem apelação pela opinião pública. Foi xingada das piores imundícies nas redes sociais e no espaço dos comentários dos portais de mídia. Como sempre, não faltou o "na hora de fazer não pensou, né???", essa pérola-frase-feita que sempre mostra a condenação do brasileiro médio sobre o prazer da mulher.

Mas o que eu quero falar aqui é o seguinte: a doméstica, como disse, foi identificada em todos os detalhes. Sabe-se que é natural de Vitória da Conquista (BA), tem 37 anos, seu nome completo foi exposto nos jornais, sua foto e filmagem foram exibidas à exaustão. Condenada publicamente, com sua imagem arruinada.

Corta pro futuro médico: a USP divulgou que um aluno, concluínte do curso de Medicina, havia sido "punido" pela instituição (glo.bo/1RRb6B7). A punição: um ano de suspensão. O ato irregular dele: estupro. Isso mesmo, es-tu-pro. E não era o primeiro, era o segundo estupro pelo qual a USP o condenava. Ainda falta um: ele é acusado de ter estuprado três colegas de universidade, duas do curso de Medicina e uma do curso de Enfermagem.

Dentro de um ano ele poderá concluir o seu curso. E teremos um médico-estuprador-serial clinicando por aí. Quem sabe na área de ginecologia, para o completo não-desespero de suas futuras pacientes. Digo "não-desespero", pois o nome do futuro médico uspiano não saiu nos jornais - e, lógico, nome e foto provavelmente jamais sairão.

(Outro parêntesis: sinceramente, se a USP não considera três estupros algo grave o suficiente pra expulsar esse aluno, acho melhor fechar a Reitoria e largar a Universidade ao deus-dará. Sem nenhuma forma de gestão ou controle ela estará mais bem administrada do que agora)

É isso aí, pessoal: só uma suspensão e nenhuma execração pública ao estuprador serial da USP. Enquanto isso a doméstica segue sendo linchada, cuspida, agredida, condenada.

A coisa é tão gritante que sem ser mulher eu concluo que é muito escroto ser mulher nesse país! Nessas horas eu fico muito tentado a achar que as mulheres nos países islâmicos radicais tem uma vida menos difícil que as brasileiras. A mulher brasileira, afinal de contas, não pode:

- andar numa rua escura ou deserta, senão está "se expondo" ao risco de ser estuprada. Se for atacada a culpa é dela, por estar numa rua escura e deserta - ainda que essa rua seja o único caminho que ela tem pra sair e chegar de casa...- usar roupa justa ou curta, senão "merece" ser estuprada ou "está pedindo". A mulher só está segura se usar burca, usar a roupa que ela quiser não pode não!

- ser bonita ou explorar a sua sexualidade com independência, senão está sendo vadia, piriguete, vagabunda, ou qualquer adjetivo que os doentes gostem de usar. Homem pode fazer o que quiser, mulher tem que ser uma santa recatada;

- ir sozinha ou com amigas a uma balada ou um bar, senão "está procurando". A mulher só pode sair se tiver um homem no grupo, pra marcar o território e protegê-la dos demais. Senão a matilha se sente inteiramente à vontade pra atacar;

- pular carnaval sozinha ou com as amigas, senão leva passada de mão, apalpada e tem que dar beijo à força. Afinal, se está sozinha no carnaval ela "está querendo", já que mulher "séria" não vai pra carnaval sem um dono.

Em suma, a culpa do estupro, do assédio e da violência é sempre da mulher, pelo simples fato dela ser mulher, e ela só está segura se estiver dentro de casa, escondida.

Se eu fosse mulher no Brasil, só me sentiria minimamente segura se treinasse krav-magá e tivesse porte de arma!

A pobre doméstica, que por imposição de uma vida difícil, dura, de pobreza, se viu obrigada a abandonar seu filho, essa foi condenada em público. As vítimas do futuro médico estuprador-serial estão feridas pro resto da vida.Tanto a doméstica como as estupradas perderam tudo, da dignidade à imagem.

O futuro médico e atual estuprador-serial, esse não! Ao homem toda a benevolência e proteção! Ele conta com toda a proteção da mídia, da USP e da lei pra se manter incólume, concluir sua faculadade e ser um respeitável médico perante a sociedade.

Fecha-se o ciclo do crime e castigo à brasileira, uma situação recorrente quando a vítima é pobre ou mulher: o criminoso segue bem, obrigado, e as vítimas devidamente condenadas e/ou destruídas. E toda a sociedade jura de pé junto (num país que nem a lei básica consegue cumprir) que estaremos bem quando matarmos todos os bandidos em praça pública. Afinal, bandido bom é bandido morto.

Menos o estuprador-serial da USP, que pra todos os efeitos nem existe. Esse nem bandido é: trata-se do "doutor" Fulano de Tal. Aquele que talvez venha a ter no cartão de visita, abaixo do nome, o título "ginecologista".

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Texto do professor e advogado Alan Souza.

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