Após ler algumas notícias sobre o programa “Criança Feliz”, acho necessário fazer alguns apontamentos sobre como é o discurso utilizado para colocar a mulher emseu devido lugar.
Na Folha, fizeram questão de deixar bem claro que o tom do discurso de Marcela foi EMOTIVO e a primeira-dama fez questão de ressaltar que será um TRABALHO VOLUNTÁRIO, SEM REMUNERAÇÃO. O tom de seu discurso também foi descrito como PAUSADO e PROFESSORAL. No G1, enfatizaram que Marcela é JOVEM e MÃE. No Estadão, seu tom foi descrito como MATERNAL e ela também destacou a importância do INSTINTO MATERNO.
Resolva as questões:
1.Destaque todas as palavras utilizadas no texto acima que estão em caixa alta:
Resposta: EMOTIVO, TRABALHO VOLUNTÁRIO, SEM REMUNERAÇÃO, PAUSADO, PROFESSORAL, JOVEM, MÃE, MATERNAL e INSTINTO MATERNO.
2. Explique como essas palavras estão ligadas no mesmo campo semântico:
Resposta: Todas as palavras fazem parte do campo semântico do papel feminino da mulher-mãe na nossa sociedade patriarcal.
3. Com suas palavras, disserte sobre os atributos destacados da primeira-dama para exercer um trabalho relacionado a crianças:
De acordo com a seleção de palavras, para trabalhar com crianças, é preciso ser jovem, emotiva, professoral e maternal, pois o papel da mulher na nossa sociedade é apenas cuidar do lar e dos filhos. Não é à toa que boas professoras retratadas na mídia seguem este padrão (maternal-jovem-emotiva). Para citar um exemplo, a Professora Helena de Carrossel eternizou, nosso imaginário, o que é ser uma boa professora querida pelos alunos. Tanto é que costumamos chamar a professora do Infantil de “tia”, alguém praticamente da família, maternal, que nem precisa ganhar tanto assim para cuidar dos “sobrinhos”. Além disso, não é coincidência não existirem professores homens atuando na Educação Infantil. Homem não tem o tal “instinto maternal”. A ênfase em Marcela ser mãe é um recado muito bem dado: quem cuida das crianças é a mãe. Ela - somente ela - com seu instinto maternal e tom pausado (tem que ser calma e emotiva) é capaz de ser a (única) responsável pelas crianças: quem pariu Mateus, que o embale. Mães, professoras, babás, avós, sogras e cuidadoras em geral são destinadas a um papel específico na sociedade quando o assunto é criança, cuidar delas. E esse trabalho deve ser “voluntário”, “sem remuneração”, porque estamos apenas fazendo a nossa parte, a nossa obrigação, ao colocar o tal do instinto materno em prática. Não precisamos de remuneração. Os homens - ministros, presidentes, prefeitos, deputados - saíram à caça de comida por nós. A partir dessas reflexões, podemos imaginar por que todas as profissões ligadas ao cuidado infantil são tratadas como menos importantes e indignas de remuneração decente. Professoras, babás, mães e empregadas domésticas - funções quase que exclusivamente femininas - não precisam de (boa) remuneração. Aos homens, os ministérios. Às mulheres, o cuidado infantil VOLUNTÁRIO.
4. Deixe um recadinho do coração ao novo governo:
Prezados, engulam esse instinto materno! Da mesma forma que homens não sabem ser pais, a gente também não sabe ser mãe. A diferença é que alguém precisa se responsabilizar pelas crianças e isso acaba caindo no nosso colo. Nós aprendemos a duras penas como é cuidar de uma criança. E não é por causa do instinto materno. É porque aos homens nunca coube essa função enquanto nós somos ensinadas desde crianças que nós brincamos de bonecas, mamadeiras, casinha, vassoura, fogãozinho e lava-louça. A eles, carros, ferramentas, fantasias de super-heróis, blocos de engenharia e roupa de astronauta. Não necessariamente somos emotivas, calmas, carinhosas e professorais. Podemos ser assertivas, duras, determinadas, ousadas, valentes, corajosas e firmes. Mas, se assim formos, seremos taxadas de loucas. Ainda bem que estamos começando a conhecer palavrinhas mágicas e uma delas é “gaslighting” (dá um google aí!). Assim, temos certeza de que não somos loucas. Somos humanas. Cuidar de criança é trabalho de todos (“it takes a village to raise a child”). Não queremos e não podemos cuidar delas sozinhas. Nós ficamos sobrecarregadas, adoecemos, enlouquecemos e perdemos nossa identidade. Não queremos mais isso. Professoras querem salários altos compatíveis com sua formação. Elas não são “tias” e não estão fazendo trabalho voluntário. São profissionais capacitadas. Babás e empregadas domésticas querem remuneração e reconhecimento compatíveis com seu enorme trabalho. Mães querem divisão de cuidados 50/50. Não precisamos ser belas, recatadas e do lar. Podemos querer dinheiro, poder, reconhecimento, respeito e, acima de tudo, uma mudança urgente de paradigma. A primeira infância é responsabilidade de toda a sociedade e não só da mãe. Marcela, não convide só “as senhoras primeiras-damas e as senhoras prefeitas municipais” para tratar do assunto. Chama uzómi! As mulheres estão carecas de saber sobre a importância de cuidar da infância. Afinal, somos nós que fazemos esse trabalho VOLUNTÁRIO há tempos.
Querem
#CriançaFeliz? Comecem priorizando o parto respeitoso no SUS, disponibilizem bancos de leite para doação de leite e orientação em todas as cidades do país, abram concurso para doulas em maternidades públicas, invistam em creches públicas de qualidade, aumentem o salário dos professores, aumentem o tempo de licença maternidade e paternidade nos estabelecimentos públicos e privados, fiscalizem a merenda de péssima qualidade das creches, regulamentem a propaganda infantil, proíbam alimentos que colaboram pra péssima saúde das crianças dentro das escolas, punam as escolas que desrespeitarem a qualidade da merenda e fizerem teatro com palhaço do Mc, cassem o registro de obstetras com taxas de 100% de cesáreas, fiscalizem as prescrições desnecessárias de leite artificial já dentro da maternidade, multem pediatras que prescrevem leite artificial sem necessidade. Invistam na infância com honestidade. Não joguem mais essa no nosso colo.
E parem de usar a Marcela!
Espero que eu tenha esclarecido tudo num tom ~professoral~ e ~emotivo~.
Fontes: