segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Delação não pode ser tortura, alerta juiz

Do Valor Econômico
André Guilherme Vieira | De São Paulo


Titular da vara federal de São Paulo que recebeu os autos da Lava-Jato sobre corrupção no Ministério do Planejamento, o juiz João Batista Gonçalves não é um entusiasta da delação premiada, que pode se transformar em "extorsão, tortura", alerta. 

O Valor entrevistou com exclusividade o magistrado que poderá ser o responsável pela condução de um eventual processo envolvendo o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, decorrente da operação. Em princípio, na hipótese de Lula tornar-se investigado na Lava-Jato, o inquérito seria distribuído a um dos três juízos especializados em crimes de lavagem de capitais em São Paulo (2ª, 6ª ou 10ª varas), porque ex-chefes do Executivo federal não têm privilégio de foro. 

"Que diferença tem a tortura de alguém que ia para o pau de arara para fazer confissões e a tortura de alguém que é preso e só é solto com uma tornozeleira, depois que aceita a delação premiada?", indaga. "E esse juiz que faz isso [homologa a colaboração premiada] depois vai julgar o caso. Isso a meu ver está errado. Não estou falando especificamente do [Sergio] Moro, estou falando em tese", diz o juiz federal, que defende mudança legislativa para que cada processo penal conte com a atuação de dois juízes: um responsável pela instrução processual e o outro pelo julgamento do réu. "Como pode o juiz recolher alguém no cárcere, forçá-lo a fazer a cooperação premiada e depois ele vai julgar. Com que serenidade?", critica.

O magistrado, no entanto, afirma que não é contrário à adoção da delação premiada: "Acho que deve ser um instrumento à disposição dos imputados. Ela não pode ser extorquida, não pode ser obtida mediante coação, mediante violência", pondera. Na opinião do juiz, a população tende a "querer sangue" quando se trata de caso criminal de grande repercussão.

Gonçalves relata um episódio em que, durante um seminário, colegas reagiram quando ele afirmou que a delação premiada deve ser mais um instrumento de defesa do que de condenação. "Daí os mais antigos sorriram e falaram: ´Não, a juventude quer sangue´. O mesmo sangue que se queria no Coliseu. O mesmo sangue que se queria quando um romano enfrentava um leão". Responsável pela ação penal sobre lavagem de dinheiro decorrente do caso Alstom (investigação sobre pagamentos de propinas feitos pela multinacional francesa a políticos de São Paulo), João Batista Gonçalves diz que a experiência com autoridades suíças indica que a delação premiada "é um instrumento absolutamente superado" para combater crimes financeiros. "Isso envolve muito dinheiro. E o dinheiro deixa rastros. Ele pode ser perfeitamente perseguido pelas autoridades e pode ser perseguido através da mídia. Hoje alguém consegue se esconder com internet, se a investigação for bem feita?", questiona o magistrado. Na opinião de Gonçalves, o relato do criminoso colaborador reproduz apenas partes de toda uma história. "A memória do delator é seletiva", ironiza. 

Perto de completar 69 anos (fará aniversário amanhã), o juiz titular da 6ª vara criminal federal decidiu que seu subordinado hierárquico, o juiz substituto Paulo Bueno de Azevedo, instruirá o processo sobre a Consist Software, empresa responsável pelo crédito consignado no Planejamento e suspeita de ter sido usada para desvios de R$ 52 milhões entre 2010 e 2015. Pelo menos R$ 37 milhões teriam abastecido ilicitamente o caixa do PT, segundo as investigações. O caso foi remetido a São Paulo obedecendo ao critério da territorialidade adotado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), na decisão em que o colegiado da corte optou pelo fatiamento da Operação Lava-Jato. 

Segundo Gonçalves, há na Justiça Federal uma tradição que norteia a distribuição de processos entre os juízes que integram uma mesma vara. "Claro que tenho competência para decidir o que será julgado por mim. Mas o processo [da Consist] tem seu número com final ímpar e a recomendação é que, na distribuição, vá para o juiz substituto", esclarece. Gonçalves conta que conversou com seu colega antes de destinar a ele o desmembramento processual da Lava-Jato: "Quando o processo chegou à vara, me informaram que era da Lava-Jato e que era [número] ímpar. Aí consultei o Paulo. Perguntei: ´Você se considera preparado para tocá-lo?´. Ele respondeu que sim. É um ótimo juiz", define. 

Paulo Bueno de Azevedo disse ao Valor que a instrução do caso tramitará sob segredo de Justiça e que não poderia fazer nenhum comentário a respeito. Na sexta-feira, o juiz aceitou pedido da defesa do ex vereador do PT de Americana, Alexandre Romano, o "Chambinho", e converteu sua prisão preventiva em domiciliar com uso de tornozeleira eletrônica. Apontado como o primeiro operador de propinas no Ministério do Planejamento a serviço do ex-tesoureiro do PT João Vaccari Neto (preso preventivamente e processado por corrupção e lavagem), Romano fez delação premiada na Procuradoria Geral da República e afirmou que a senadora Gleisi Hoffmann (PT-PR) seria beneficiária de dinheiro desviado da Pasta. O delator também implicou o ex-ministro do Planejamento Paulo Bernardo (PT-PR), marido de Gleisi, que figura entre os investigados no inquérito que tramita na 6ª vara criminal federal de São Paulo.

Gonçalves atuou durante 20 anos como juiz cível e é um profundo conhecedor da legislação sobre improbidade administrativa. Formou-se bacharel em Direito em 1970, no Mackenzie. Em 1999 concluiu o doutorado em Direito do Estado na Universidade de São Paulo (USP). "Foram muitos anos de estudos na USP que me tornaram especialista em crimes financeiros", diz, apontando o diploma de doutor afixado em parede de seu gabinete. 

Há pouco mais de um ano se inscreveu, a uma hora e meia do prazo final, para ocupar a 6ª vara criminal, espécie de vitrine da Justiça Federal paulista em que já transitaram casos de repercussão nacional, como as operações Satiagraha e Castelo de Areia - ambas tornadas inócuas por tribunais superiores, que anularam ritos processuais conduzidos pelo então juiz Fausto De Sanctis, atualmente desembargador federal com atuação na área previdenciária. Gonçalves ganhou a disputa para a 6ª vara por decisão do Conselho Federal da Magistratura, que adotou o critério de antiguidade ao nomeá-lo. O magistrado foi criticado por alguns de seus pares, por ter pedido a remoção, na época, a pouco mais de dois anos da data limite para a aposentadoria compulsória, que então ocorria aos 70 anos. "Tinha a vaga aberta, eu preenchia todo os requisitos objetivos e subjetivos. Há sempre os que contestam. É natural. O titular anterior, Fausto De Sanctis, tocou cinco ações de repercussão nacional", resume.

Gonçalves reconhece que a perspectiva de julgar casos de repercussão o motivou a concorrer para o cobiçado juízo federal. Ele quer atuar na magistratura até os 75 anos, fato tornado possível após a aprovação pelo Congresso da Proposta de Emenda à Constituição conhecida como PEC da Bengala. "Eu sou um dos primeiros na lista de antiguidade e, se abrir uma vaga, e eu tiver a possibilidade de ascender ao Tribunal [Regional Federal da 3 ª Região], gostaria muitíssimo. Para encerrar a minha carreira da melhor forma possível". 

Site: http://www.valor.com.br/politica/4275244/delacaonao-pode-ser-tortura-alerta-juiz

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