Do Valor Econômico
André Guilherme Vieira | De São Paulo
Titular da vara federal de São Paulo que recebeu os
autos da Lava-Jato sobre corrupção no Ministério do
Planejamento, o juiz João Batista Gonçalves não é um
entusiasta da delação premiada, que pode se
transformar em "extorsão, tortura", alerta.
O Valor entrevistou com exclusividade o magistrado
que poderá ser o responsável pela condução de um
eventual processo envolvendo o ex-presidente Luiz
Inácio Lula da Silva, decorrente da operação. Em
princípio, na hipótese de Lula tornar-se investigado na
Lava-Jato, o inquérito seria distribuído a um dos três
juízos especializados em crimes de lavagem de
capitais em São Paulo (2ª, 6ª ou 10ª varas), porque
ex-chefes do Executivo federal não têm privilégio de
foro.
"Que diferença tem a tortura de alguém que ia para o
pau de arara para fazer confissões e a tortura de
alguém que é preso e só é solto com uma tornozeleira,
depois que aceita a delação premiada?", indaga. "E
esse juiz que faz isso [homologa a colaboração
premiada] depois vai julgar o caso. Isso a meu ver está
errado. Não estou falando especificamente do [Sergio]
Moro, estou falando em tese", diz o juiz federal, que
defende mudança legislativa para que cada processo
penal conte com a atuação de dois juízes: um
responsável pela instrução processual e o outro pelo
julgamento do réu. "Como pode o juiz recolher alguém
no cárcere, forçá-lo a fazer a cooperação premiada e
depois ele vai julgar. Com que serenidade?", critica.
O magistrado, no entanto, afirma que não é contrário à
adoção da delação premiada: "Acho que deve ser um
instrumento à disposição dos imputados. Ela não pode
ser extorquida, não pode ser obtida mediante coação,
mediante violência", pondera. Na opinião do juiz, a população tende a "querer
sangue" quando se trata de caso criminal de grande
repercussão.
Gonçalves relata um episódio em que, durante um
seminário, colegas reagiram quando ele afirmou que a
delação premiada deve ser mais um instrumento de
defesa do que de condenação. "Daí os mais antigos
sorriram e falaram: ´Não, a juventude quer sangue´. O
mesmo sangue que se queria no Coliseu. O mesmo
sangue que se queria quando um romano enfrentava
um leão".
Responsável pela ação penal sobre lavagem de
dinheiro decorrente do caso Alstom (investigação
sobre pagamentos de propinas feitos pela
multinacional francesa a políticos de São Paulo), João
Batista Gonçalves diz que a experiência com
autoridades suíças indica que a delação premiada "é
um instrumento absolutamente superado" para
combater crimes financeiros. "Isso envolve muito
dinheiro. E o dinheiro deixa rastros. Ele pode ser
perfeitamente perseguido pelas autoridades e pode
ser perseguido através da mídia. Hoje alguém
consegue se esconder com internet, se a investigação
for bem feita?", questiona o magistrado.
Na opinião de Gonçalves, o relato do criminoso
colaborador reproduz apenas partes de toda uma
história. "A memória do delator é seletiva", ironiza.
Perto de completar 69 anos (fará aniversário amanhã),
o juiz titular da 6ª vara criminal federal decidiu que seu
subordinado hierárquico, o juiz substituto Paulo Bueno
de Azevedo, instruirá o processo sobre a Consist
Software, empresa responsável pelo crédito
consignado no Planejamento e suspeita de ter sido
usada para desvios de R$ 52 milhões entre 2010 e
2015. Pelo menos R$ 37 milhões teriam abastecido
ilicitamente o caixa do PT, segundo as investigações.
O caso foi remetido a São Paulo obedecendo ao
critério da territorialidade adotado pelo Supremo
Tribunal Federal (STF), na decisão em que o
colegiado da corte optou pelo fatiamento da Operação
Lava-Jato.
Segundo Gonçalves, há na Justiça Federal uma
tradição que norteia a distribuição de processos entre
os juízes que integram uma mesma vara.
"Claro que tenho competência para decidir o que será
julgado por mim. Mas o processo [da Consist] tem seu
número com final ímpar e a recomendação é que, na
distribuição, vá para o juiz substituto", esclarece.
Gonçalves conta que conversou com seu colega antes
de destinar a ele o desmembramento processual da
Lava-Jato:
"Quando o processo chegou à vara, me informaram
que era da Lava-Jato e que era [número] ímpar. Aí
consultei o Paulo. Perguntei: ´Você se considera
preparado para tocá-lo?´. Ele respondeu que sim. É
um ótimo juiz", define.
Paulo Bueno de Azevedo disse ao Valor que a
instrução do caso tramitará sob segredo de Justiça e
que não poderia fazer nenhum comentário a respeito.
Na sexta-feira, o juiz aceitou pedido da defesa do ex vereador
do PT de Americana, Alexandre Romano, o
"Chambinho", e converteu sua prisão preventiva em
domiciliar com uso de tornozeleira eletrônica.
Apontado como o primeiro operador de propinas no
Ministério do Planejamento a serviço do ex-tesoureiro
do PT João Vaccari Neto (preso preventivamente e
processado por corrupção e lavagem), Romano fez
delação premiada na Procuradoria Geral da República
e afirmou que a senadora Gleisi Hoffmann (PT-PR)
seria beneficiária de dinheiro desviado da Pasta. O
delator também implicou o ex-ministro do
Planejamento Paulo Bernardo (PT-PR), marido de
Gleisi, que figura entre os investigados no inquérito
que tramita na 6ª vara criminal federal de São Paulo.
Gonçalves atuou durante 20 anos como juiz cível e é
um profundo conhecedor da legislação sobre
improbidade administrativa. Formou-se bacharel em
Direito em 1970, no Mackenzie. Em 1999 concluiu o
doutorado em Direito do Estado na Universidade de
São Paulo (USP). "Foram muitos anos de estudos na
USP que me tornaram especialista em crimes
financeiros", diz, apontando o diploma de doutor
afixado em parede de seu gabinete.
Há pouco mais de um ano se inscreveu, a uma hora e
meia do prazo final, para ocupar a 6ª vara criminal,
espécie de vitrine da Justiça Federal paulista em que
já transitaram casos de repercussão nacional, como as
operações Satiagraha e Castelo de Areia - ambas
tornadas inócuas por tribunais superiores, que
anularam ritos processuais conduzidos pelo então juiz
Fausto De Sanctis, atualmente desembargador federal
com atuação na área previdenciária. Gonçalves ganhou a disputa para a 6ª vara por
decisão do Conselho Federal da Magistratura, que
adotou o critério de antiguidade ao nomeá-lo.
O magistrado foi criticado por alguns de seus pares,
por ter pedido a remoção, na época, a pouco mais de
dois anos da data limite para a aposentadoria
compulsória, que então ocorria aos 70 anos.
"Tinha a vaga aberta, eu preenchia todo os requisitos
objetivos e subjetivos. Há sempre os que contestam. É
natural. O titular anterior, Fausto De Sanctis, tocou
cinco ações de repercussão nacional", resume.
Gonçalves reconhece que a perspectiva de julgar
casos de repercussão o motivou a concorrer para o
cobiçado juízo federal. Ele quer atuar na magistratura
até os 75 anos, fato tornado possível após a
aprovação pelo Congresso da Proposta de Emenda à
Constituição conhecida como PEC da Bengala. "Eu
sou um dos primeiros na lista de antiguidade e, se
abrir uma vaga, e eu tiver a possibilidade de ascender
ao Tribunal [Regional Federal da 3 ª Região], gostaria
muitíssimo. Para encerrar a minha carreira da melhor
forma possível".
Site: http://www.valor.com.br/politica/4275244/delacaonao-pode-ser-tortura-alerta-juiz
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